
Na última sexta-feira (02OUT20), foi publicada no Diário Oficial da União a nova Lei que cria o Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro! Isso mesmo! Trata-se da novel Lei 14.069/2020.
A legislação especifica que o Cadastro deverá conter obrigatoriamente informações sobre os condenados por estupro, incluindo características físicas, impressões digitais, perfil genético (DNA), fotos e endereço residencial. Em caso de condenado em liberdade condicional, o cadastro deverá conter também os endereços residenciais dos últimos três anos e as profissões exercidas nesse período. Dessa forma, deveremos ter uma rede de informações sobre as pessoas que praticam esse crime terrível cometido contra bebês, crianças, adolescentes, jovens e mulheres em todo o país, dados esses essenciais para a tomada de decisões.
O crime de estupro é definido no Código Penal Brasileiro como: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso“, tendo a sua reprimenda estabelecida como sendo de 06 (seis) a 10 (dez) anos de reclusão e sendo enquadrado no rol dos crimes hediondos.
Dentro desse raciocínio e quando da análise do núcleo dos tipos penais em comento, tem-se que ter (alcançar, conseguir obter algo) é o verbo nuclear, cujo objeto pode ser a conjunção canal (cópula entre pênis e vagina) ou outro ato libidinoso (passível de gerar prazer sexual, satisfazendo a lascívia).
Por sua vez, de acordo com a doutrina, o termo “lascívia”, derivado do latim lascívia, de lascivus, quer originalmente significar divertimento, folguedo. Porém, no sentido penal, traduz todo e qualquer ato de libertinagem, de luxúria, de gozo carnal. Nesta razão, lascívia não quer significar somente as naturais conjunções carnais, ou seja, as cópulas normais; é todo ato de libertinagem, de devassidão entre pessoas de sexo diferente ou, mesmo, de sexo similar.
A título de curiosidade, de acordo com o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, atualizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil vem registrando cada vez mais recordes no quesito violência sexual: foram 66.000 (sessenta e seis mil) vítimas de estupro no Brasil em 2.018, maior índice desde que o estudo começou a ser feito em 2.007. A maioria das vítimas (53,8%) foram meninas de até 13 (treze) anos de idade. Há uma estimativa que, em média, ocorram cerca de 180 (cento e oitenta) estupros por dia no Brasil e, sem a menor sombra de dúvidas, alguma atitude carecia de maior atenção pelas autoridades contra esses números repudiáveis.
Mas atenção, pasmem, sentados: os dados susoreferidos referem-se apenas aos casos reportados à Polícia e, segundo os estudiosos do assunto, esses percentuais orbitam em torno de apenas 10% (dez por cento)! Imaginemos os números sombrios que essa informação, de pronto, nos traz!
É que os crimes sexuais, via de regra, são consumados longe das vistas das testemunhas, praticamente “às escuras”, podemos assim dizer e estão entre os que possuem baixa taxa de notificação. Entre os motivos gerais para que isso ocorra, estão a vergonha, o medo de retaliação por parte do agressor e o receio do julgamento pela sociedade após a Denúncia.
Mas qual a verdadeira relação disso tudo com a Lei de Talião?
Pois bem, conhece-se como Talião o antigo sistema de penas pelo qual o autor de um delito devia sofrer castigo igual ao dano por ele causado.
Os primeiros indícios de existência da Lei de Talião foram encontrados no Código de Hamurabi, em 1780 a. C. no Reino da Babilônia. Esse sistema vigorou em muitas legislações remotas e a Pena de Talião foi praticada de forma mais abrangente e comumente na Idade Média, pois era interpretada não só como um Direito, mas até como uma exigência social de vingança em favor da honra pessoal, familiar ou tribal.
A pena de Talião e outras cruéis desapareceram tecnicamente nas legislações modernas na quase totalidade dos Países, sob a influência de novas doutrinas e novas tendências humanas relacionadas com o Direito Penal e principalmente com o surgimento da Organização das Nações Unidas – ONU, a qual trouxe na sua essência a luta pelos direitos humanos, o respeito à autodeterminação dos povos e a solidariedade internacional, mas não na prática!
Em sendo assim, com os presídios superlotados no nosso País e como não existem alas específicas para os autores do crime de estupro, o estuprador, mesmo antes de ser julgado, mesmo antes de ser condenado, mesmo antes de ser considerado culpado, mesmo antes do trânsito em julgado da sua Sentença Condenatória, no calor dos fatos, no trâmite do seu processo, às vezes até em fase de Inquérito Policial, por falta de opção e adequação, é colocado em meio a criminosos diversos, e em consequência, pela praxe antiga ou prática usual dos presos quanto a esse tipo de delinquente, é molestado sexualmente, é usado sexualmente à força, é estuprado na verdadeira expressão da palavra (de acordo com a nova concepção do crime de estupro), configurando assim a Pena de Talião dentro do Estado Democrático de Direito, por falha absoluta do Estado-Custódia.
Em termos conclusivos, para o acusado do crime de estupro que ainda responde a processo e que na verdade é inocente, resta-lhe o trauma eterno e a revolta interminável de uma injustiça sem fim; para o acusado do crime de estupro que realmente é culpado, resta-lhe o conformismo de aceitar a condenação de duas penas distintas decorrentes do seu ato criminoso e, por fim, para os “carrascos de Talião”, resta-lhes a “glória”, o “respeito”, o “aplauso” dos seus colegas de infortúnio, saindo ilesos do novo delito e sentindo-se os verdadeiros paladinos da Justiça de Talião.
Renato Cunha – Advogado Criminalista e Militar e Chefe de Gabinete da 2a Procuradoria de Justiça Criminal, licenciado pelo exercício das funções.